Telemedicina – pode a tecnologia não ter pressa?

Semanas atrás, no auge da divulgação da Resolução do CFM que tratava, com atraso, da questão da Telemedicina no Brasil, meu celular pipocava uma notificação atrás da outra, em certo grupo do qual participo e que reúne psiquiatras. Colegas que jamais haviam discutido qualquer tema de tecnologia aplicada à saúde agora se apressavam a criticar, com virulência, a certamente desconhecida Telemedicina. Enquanto uns anunciavam o fim da medicina, outros bradavam contra a desumanização da mesma. Alguns outros viam maquiavélicas intenções ocultas e eu tentava, em vão, entender a lógica dessas superficiais análises. Cansado de tanta bobagem, passei a ignorar o grupo e fui cuidar da vida.

Tecnologias, faz tempo, são associadas à pressa, ao vertiginoso e quase sempre desumano avanço de máquinas sobre homens. Tecnologias remetem, ainda hoje, à todo tipo de imagem contrária ao lento fruir da vida, à contemplação, ao deleite, a tudo de bom que possamos fazer entre humanos. Mas os sinais são contraditórios. E até a ficção vem nos mostrando isso. Em 2001, uma odisseia no espaço, já nos anos sessenta, a inteligência artificial de Hall quase nos fez chorar, de tão bacana que era. Quando o astronauta começa a desliga-la, quase que torcemos contra. Muito tempo depois, em vários outros filmes e até animações (vide Wall-e, Chappie, Blade Runner, Robôs e muitos outros), somos apresentados à ideia de robôs humanizados, de máquinas que nos são simpáticas, que nos arrancam bons sentimentos. E chega a ser de um reducionismo atroz pensarmos em nossa convivência futura com essas figuras como algo para sempre frio, monótono e sem graça. Na dúvida, basta olhar com o mínimo de boa vontade para qualquer robozinho feito no Japão e imaginar esses seres ainda mais verossímeis daqui a cinco ou dez anos.

Eu me arrisco a dizer que sempre pensamos a tecnologia como velocidade, como pressa, porque ela ainda não havia chegado até onde chegou: ao âmago de nossas vidas quotidianas. Mas agora tudo mudou. Há quem prefira falar até em “tecnologias de aproximação”, como o espanhol José Maria Cepeda (do site Salud Conectada), enfatizando o aspecto benévolo de chips, programas, aplicativos e dispositivos. Pois estão todos eles, tudo isso junto, contribuindo, de certa forma, para nos aproximarmos mais uns dos outros. Ou não estão?

As experiências com as novas e disruptivas tecnologias são distintas e muito variáveis. Elas mudam de acordo com quem as utiliza, de acordo com o momento e o contexto, até com o fundo emocional com que são utilizadas. Uma mesma pessoa pode passar por alguma situação onde o computador foi o problema e, num momento seguinte, ser “salvo” pela tecnologia mobile. Opiniões e posturas radicalmente anti-tecnologias soam, cada vez mais, como algo ridículo. Assim como ocorreu em meio à falsa polêmica em torno da Resolução do CFM sobre a Telemedicina, onde muitos médicos pareciam estar bradando seus tacapes de dentro de escuras cavernas. Algo no mínimo contraditório pois eles estavam falando mal da telemedicina através de postagens em grupos do WhatsApp, percebem a situação?

Mas voltando ao ponto central deste artigo, a pergunta é se podemos ter uma tecnologia sem pressa. Ou noutros termos: pode a tecnologia não ter pressa? As duas perguntas aparentemente são as mesmas mas, na realidade, guardam uma sútil diferença. Se podemos ter uma tecnologia sem pressa? Creio que sim. Ou seja, podemos sim adotar novas e até disruptivas tecnologias em nosso próprio e consciente ritmo. Pode parecer uma especie de missão impossível mas, no fundo, é só o que nos resta a fazer daqui pra frente, se não quisermos sofrer de todos os males provocados pela adoção automática, irrefletida e brutal de todas as novas tecnologias. Sobretudo se estivermos falando do contexto médico, de contato com pacientes, com a vida e o sofrimento de pessoas. Eu penso que estaremos, cada vez mais, convivendo com máquinas, dispositivos, aplicativos, sistemas, robôs, andróides e ciborgues e, como humanos, haveremos de desenvolver maneiras de continuarmos humanos em meio a tudo isso. É bem pouco provável que as futuras gerações não estabeleçam nenhum tipo de contato emocional com máquinas que estarão cada vez mais próximas emocionalmente de nós. Quem se lembra do filme Chappie vai entender do que estou falando. Faremos isso da nossa maneira, a partir de nossos recursos emocionais, de nossa inteligência emocional mas é muito provável que, cada vez mais, desenvolvamos novas habilidades e capacidades para lidar com aqueles que não são como nós. É interessante traçar neste ponto um paralelo com o que já está ocorrendo, em várias partes do mundo, em relação à maneira como animais são vistos e respeitados em nossa sociedade. Cidadãos do mundo ocidental civilizado vão, pouco a pouco, aprendendo que os animais também sofrem, tem direitos e merecem nosso respeito. Imagino que o mesmo se dará, daqui a muitas décadas, com os seres não exatamente humanos que teremos ao nosso lado.

Mas a tecnologia pode não ter pressa, ela mesma? Pode existir uma tecnologia que não nos remeta à vertiginosa e caótica velocidade que nos ameaça tanto? Creio também que sim. Penso mesmo que nós humanos, algumas vezes, tratamos de nos aproveitar de uma nova tecnologia para matar o pouco de humanidade que ainda havia. São os nossos usos. Não é a tecnologia que em si mesma contém elementos “desumanizadores”, somos nós que a utilizamos com este propósito. Um exemplo banal: nossos celulares. Muitas pessoas ainda os veem como vilões de nossa vida social porque com eles deixamos de estar com as pessoas. Por outro lado, se pensarmos nos muitos usos de aproximação que temos num mesmo aparelho, esse argumento vai por água abaixo. Pense nas mensagens trocadas, nas vídeo chamadas onde você poderá ver a outra pessoa, isso sem falar em dezenas e dezenas de materiais que podem ser compartilhados sincrônica ou assincrônicamente. Uma nova vida de relação emerge pelas tecnologias. O ser humano pode se colocar um passo atrás, um passo adiante ou no exato ponto que as tecnologias estão com suas soluções. É sempre uma escolha, consciente ou não, que fazemos.

A Telemedicina. A possibilidade de entrarmos em contato com nossos pacientes também no ciberespaço. De mesclarmos contatos digitais com outros tantos presenciais (ou físicos, já que a presença digital também é uma presença). A medicina do futuro será híbrida, não há dúvida nenhuma. Mas o incremento ou a perda de seu aspecto humano depende…dos humanos. O desafio não é “fazer frente” às máquinas. A ameaça não vem, pelo menos não neste momento, dos robôs. A ameaça segue sendo nós mesmos, que perseveramos e somos muito habilidosos no quesito “desumanizar”. Quem disse que a interface de um prontuário eletrônico precisa ser uma sucessão de botões repetitivos, de ícones incompreensíveis, de abas inúteis? Quem disse que um prontuário assim não pode ser diferente e libertar o médico para o que melhor sabe fazer com seu paciente, empatizar com ele e dar-lhe apoio. Nossas soluções tecnológicas, é claro, ainda padecem destes males ridículos. Parecem nos ajudar mas ainda nos irritam e atrasam. Mas isso não quer dizer que, por causa disso, devemos ser “contra as tecnologias”. Pensemos na telemedicina, poupando as pessoas de deslocamentos inúteis, cansativos e caros. A agilidade de decisões médicas, o potencial imenso para aumentarmos a atenção com que as pessoas são tratadas, a possibilidade de contarmos até com informações provenientes dos ambientes de moradia e trabalho das pessoas, de dispositivos conectados ao corpo delas. Estamos falando de uma medicina conectada com tudo mais que ocorre para além das quatro paredes de nossos monótonos consultórios e hospitais. Isso é pouco? Isso é desprezível? Isso representa algum tipo de “ameaça” à medicina conforme entendemos? De modo nenhum, muito pelo contrário. Se é para sermos “Slow”, se precisamos olhar com calma, se devemos respeitar os momentos, se precisamos descer de nossos protegidos pedestais, a Telemedicina, eu não tenho dúvidas, pode nos ajudar, e muito. Ela nos conecta com nossos – já conectados – pacientes e nos oferece mais uma chance, nestes tempos corridos, de sermos melhor observadores e de melhor acompanharmos a vida das pessoas. Vamos à ela, com pressa.

Texto de contribuição ao debate em torno da Telemedicina, escrito para o movimento de Slow Medicine Brasil

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