Introdução
A recente – e já revogada – Resolução do CFM sobre a Telemedicina provocou protestos de parte da classe médica e quase que unânime apoio da parte de profissionais e entidades ligadas à área da informática médica. Embora as críticas tenham sido na sua maioria infundadas, precipitadas e até algo preconceituosas, esse episódio serviu para revelar que a classe médica brasileira na verdade está atrasada no que diz respeito à discussão de temas ligados à saúde digital. Como todos já sabem, a resolução anterior do CFM sobre Telemedicina tinha sido lançada em 2002, quando nenhum de nós sequer imaginava que estaria pedindo pizza por um aplicativo de celular. As coisas evoluíram e uma infinidade de serviços passaram a ser oferecidos por meio digital, no mundo inteiro. Exceto, é claro, os atendimentos médicos, no Brasil.
Nos últimos anos as tecnologias transformaram a vida das pessoas em praticamente todas as áreas. Passou-se a conviver com dispositivos os mais variados, centenas de aplicativos e em geral aceita-se de bom grado que alguma tecnologia faça por nós o que antes demorava muito mais tempo ou esforço para se fazer. Ao mesmo tempo porém, as consultas médicas ainda representavam uma espécie de último bastião do mundo analógico, frente ao tsunami digital que nos tomou. Muito embora a medicina esteja cercada de avanços tecnológicos e alguns serviços esbanjem recursos high-tech, a imensa maioria das clínicas, consultórios e hospitais onde o cidadão comum busca atendimento segue sendo um espaço relativamente impermeável a essa torrente digital, lugares para onde as pessoas precisam se deslocar pessoalmente, algumas vezes esperando por horas para falar com um profissional olho no olho. Por mais que os médicos considerem essa combinação natural e imutável, a verdade é que as pessoas andam se desacostumando desse desconforto e, se pudessem, estariam fazendo tudo por via digital, consultas médicas inclusive. O motivo simples é que fazer no digital costuma ser mais pratico, mais cômodo, mais direto, mais rápido e até mais barato. Alguns dirão que no caso das consultas médicas é diferente. Mas será mesmo? Será que as pessoas vão continuar aceitando fazer tudo por meio digital, exceto suas consultas médicas?
Embora a Resolução já tenha sido revogada e aguarde-se para não se sabe quando uma nova edição tratando do tema, não deixa de ser interessante aproveitar a polêmica para refletir sobre o entendimento da classe médica que emergiu sobre um assunto tão atual: a transformação digital de nossa vida quotidiana, porque é disso que se trata.
A Psiquiatria em tempos digitais
Como o tema “Telemedicina” é muito amplo, escolhi me deter apenas sobre a Telepsiquiatria e, mais especialmente, sobre as teleconsultas psiquiátricas, como elas ficariam caso a Resolução fosse implementada e que ajustes nela poderiam ser feitos de modo à torná-la, como digo no título, boa para todos, pacientes e psiquiatras.
Com a Resolução revogada, este é o momento, ao meu ver, para cada especialidade fazer as suas considerações, definindo como o importante recurso da Telemedicina poderia contribuir ou não para a sua área. Neste artigo é o que procuro fazer, na condição de psiquiatra especialista em Informática em Saúde, obviamente interessado que minha especialidade possa usar, amplamente, os recursos da Telemedicina. Uma nova Resolução, espera-se, deve surgir destas e de tantas outras considerações feitas por médicos e entidades, sintonizando nosso sistema de saúde com os avanços tecnológicos. Não sabemos quando uma nova Resolução será entregue mas podemos imaginar que alguns pontos da anterior reapareçam numa próxima. Esses pontos provavelmente serão aqueles que o CFM – e a classe médica quase que como um todo – parece entender como “cláusulas pétreas” relativas, por exemplo, à preservação da relação médico-paciente. Por outro lado, infelizmente, se esse mesmo entendimento não for relativizado e contextualizado com os valores e práticas da sociedade atual é de se esperar que isso venha a colocar alguns obstáculos à prática da telemedicina. Noutras palavras, a medicina brasileira vai precisar compreender a dimensão das transformações sociais e culturais em curso e se situar frente a isso, necessariamente revendo inclusive temas éticos tidos até então como imutáveis. Uma medicina apegada ao analógico não é mais compatível com uma sociedade aberta ao digital.
Voltando à psiquiatria, talvez ela seja uma das especialidades onde o “recurso” da telemedicina apresente menos problemas ou dificuldades operacionais. Sem a necessidade de acoplar outros equipamentos e dispositivos e dispensando, verdade seja dita, a realização do exame físico (qual psiquiatra o faz?) a consulta psiquiátrica à distancia é indiscutivelmente interessante e atraente, tanto para médicos como para pacientes. Ela permite até que a questão do estigma seja habilmente contornada, possibilitando que uma pessoa acesse um psiquiatra sem precisar se deslocar, sem que ninguém no bairro ou na cidade fique sabendo. Inúmeros trabalhos científicos inclusive confirmam a precisão dos diagnósticos através desta modalidade de atendimento além, é claro, do índice de satisfação dos usuários. Em países desenvolvidos (como Canadá e EUA), a telepsiquiatria já é utilizada há anos com absoluto sucesso. Será preciso desenvolvermos porém, toda uma tele-propedêutica digital (em português) de modo a transplantarmos para o mundo digital as abordagens investigativas que utilizamos em nossos exames psíquicos. Defendo aqui a ideia de que a natureza da consulta psiquiátrica é outra. O exame psíquico trabalha com a observação do paciente em aspectos que normalmente escapam ao clínico comum ou não são por ele valorizados, como a fala, os trejeitos, as atitudes, as reações emocionais durante a consulta etc. Volto a enfatizar que, no caso da psiquiatria, a utilização da Telemedicina é perfeitamente compatível e adequada. Tudo que observamos e consideramos, num exame psíquico, pode ser feito à distância. E se considerarmos o rápido desenvolvimento dos equipamentos e velocidades de conexão, é evidente que tudo ficará ainda mais fácil e melhor. Os psiquiatras tem na Telemedicina portanto, um de seus maiores aliados para ampliarem o acesso à especialidade de modo efetivo, moderno e democrático. Deveriam ser, ouso dizer, seus maiores entusiastas e seus melhores praticantes.
Os problemas da Resolução (para nós, psiquiatras)
Muito embora a Resolução do CFM tenha sido saudada como um importante passo no sentido de ampliarmos o uso da telemedicina em nosso sistema de saúde, ela continha algumas questões que, na verdade, poderiam continuar comprometendo seu amplo uso. Algumas dessas questões, na verdade, passaram desapercebidas pela maioria dos médicos que criticaram ou comemoraram o lançamento da Resolução. Vejamos então em que consistem essas questões e os problemas que poderiam acarretar, especialmente em relação à telepsiquiatria e ao atendimento de pacientes psiquiátricos.
Para a análise, optei por extrair trechos da nota divulgada pelo CFM onde o relator da Resolução expõe seus principais pontos, um texto mais revelador do que o da própria. Selecionei apenas os tópicos que trazem de forma manifesta ou oculta concepções que repercutiriam na realização de teleconsultas psiquiátricas. Meus comentários estarão em seguida a cada trecho.
A questão do sigilo e da gravação de imagens
“Para assegurar o respeito ao sigilo médico, por exemplo, um princípio ético fundamental na relação com os pacientes, todos os atendimentos devem ser gravados e guardados, com envio de um relatório ao paciente. “Sempre deverá ser mantida a confidencialidade, pois precisamos ter certeza de que não haverá vazamento das informações trocadas entre médico e paciente, seja por meio da atuação de hackers, ou por indiscrição dos profissionais”, destacou Soares.
“Outro ponto importante será a concordância e autorização expressa do paciente ou seu representante legal − por meio de consentimento informado, livre e esclarecido, por escrito e assinado – sobre a transmissão ou gravação das suas imagens e dados”.
No tocante ao ítem “sigilo médico”, pacientes psiquiátricos talvez tenham mais para se preocupar do que os demais pacientes. É claro que ninguém aprecia o fato de ter suas queixas clínicas expostas fora do ambiente protegido de um consultório médico. Mas é impossível comparar o justo temor que pacientes psiquiátricos possam ter de que seus conteúdos emocionais venham a vazar e o receio de que um paciente cardiopata, por exemplo, tenha de que seus níveis pressóricos da quinzena anterior sejam conhecidos por outras pessoas. Embora sigilo médico e privacidade sejam valores universais, temos aqui duas situações algo distintas, pelo menos na prática. Uma consulta psiquiátrica é o momento em que a vida emocional de uma pessoa é desnudada, seus mais secretos impulsos, seus temores, seus medos, são revelados. Delírios persecutórios, alucinações auditivas, fobias, compulsões por sexo ou por limpeza extrema, manias e pensamentos recorrentes de suicídio não podem ser considerados meros equivalentes de dores nas costas, pontadas no peito ou tosse seca ao acordar. A simples ameaça de que tais conteúdos psíquicos possam ser vazados é apavorante para qualquer paciente…e preocupante, muito preocupante, para qualquer psiquiatra.
E o que isso tem a ver com a Telemedicina? Tudo. Um paciente psiquiátrico pode muito bem concordar em realizar uma teleconsulta, transmitindo sua imagem para o especialista que se encontra na outra ponta. Até aí, tudo bem. Mas esse mesmo paciente, ao ser informado que toda a consulta será gravada e ficará guardada, pode perfeitamente se recusar a realizar a teleconsulta. Eu pergunto: qual paciente com algum transtorno mental concordará com isso? Que garantias poderemos dar às pessoas de que suas revelações íntimas não serão conhecidas por outros que tenham acesso ao vídeo gravado? A consequência é que, na psiquiatria, a teleconsulta simplesmente pode ficar inviável pela exigência de que a mesma seja gravada. A Resolução estabelece que um relatório da teleconsulta deverá ser encaminhado ao paciente. Correto. Mas qual o sentido de se gravar e arquivar o vídeo da teleconsulta, onde a exposição do paciente será ainda mais evidente? Em nome do que?
A questão da “presença” nas consultas
“A primeira consulta deve ser presencial, mas no caso de comunidades geograficamente remotas, como florestas e plataformas de petróleo, pode ser virtual, desde que o paciente seja acompanhado por um profissional de saúde. Nos atendimentos por longo tempo ou de doenças crônicas, é recomendada a realização de consulta presencial em intervalos não superiores a 120 dias.”
O que é “estar presente” numa consulta, no século vinte e um? Já no século 17 pacientes se faziam “presentes” para seus médicos através de cartas, e isso era aceito sem maiores problemas. Recebiam orientações à distância, discutiam seus sintomas e prognósticos. Tudo por carta.
A simples exigência de uma primeira consulta presencial – espécie de “cláusula pétrea” do cânone médico – é, na verdade, um sinal de que o CFM, e muito provavelmente, quase toda a classe médica, ainda tem dificuldades para (re)pensar a consulta médica nestes tempos digitais. Dificuldade para entender inclusive que na telemedicina o encontro se dá sim, só que no ciberespaço. Essa citada exigência, ainda que em parte compreensível para várias especialidades médicas, não se sustenta para a psiquiatria onde, mesmo que uma consulta presencial seja feita, não há nada que ali ocorra que também não possa ocorrer numa teleconsulta. Já é reconhecido que a imensa maioria dos psiquiatras, salvo raríssimas exceções (e sobretudo em ambiente acadêmico), não realiza o exame físico. É portanto perfeitamente possível que, ao menos para a psiquiatria, a teleconsulta se dê desde a primeira consulta, sem nenhuma necessidade de um encontro presencial prévio. Em último caso, haveria ainda a possibilidade de uma próxima resolução do CFM tratar as teleconsultas psiquiátricas como estavam sendo tratadas as teleconsultas para “áreas geograficamente remotas”, ou seja, permitindo-se uma primeira consulta não presencial, desde que sob acompanhamento de um profissional de saúde. Esse arranjo poderia ser utilizado sem maiores problemas por pacientes do SUS que poderiam procurar uma Unidade de Saúde para realizarem uma teleconsulta com o psiquiatra. Por outro lado isso seria um razoável obstáculo na rede privada, obrigando os pacientes a recorrerem a algum profissional de saúde para mediar a primeira consulta (à distância) com o psiquiatra. É claro que isso seria melhor do que simplesmente vetar uma primeira consulta à distancia, mas é certo que traria desconforto (e custo) para os pacientes. É de se supor até que o mercado poderia acabar se ajustando a essa exigência e que então surgiriam profissionais e serviços de saúde dispostos a atuar como “mediadores”, cobrando por isso. De todas as maneiras, parece claro que a exigência de uma primeira consulta presencial na psiquiatria não se sustenta e que deveria ser removida de uma próxima resolução do CFM.
Mas existe um outro grande problema por detrás desta exigência e daquela outra que estabelece a obrigatoriedade de uma nova consulta presencial a cada quatro meses: É que esses dois pontos inviabilizam totalmente que se faça Telemedicina para pacientes localizados a uma razoável distância do médico, digamos acima de cem quilômetros ou algo do gênero. Um contrassenso total em matéria de Telemedicina, um recurso que ignora distâncias! Nenhum paciente de uma região distante se proporá a vir se consultar presencialmente e retornar depois de quatro meses. Nem mesmo (e muito menos) um paciente crônico. Fica claro que isso representa uma espécie de Telemedicina pela metade (e para próximos) e que é um entendimento equivocado que merece ser revisto.
Um outro problema está ligado à questão das chamadas “áreas geograficamente remotas”. Existe uma espécie de mito de que somente áreas próximas à florestas ou plataformas marítimas possam ser consideradas “remotas”. No entanto, mesmo nas grandes cidades há comunidades e bairros que podem ser tidos como “modernamente (ou urbanamente) remotos”, tamanha é a distância que seus moradores precisam transpor até o centro. Se considerarmos também a carência de serviços públicos nestas áreas urbanas, o conceito de área “geograficamente remota” poderia ser revisto e ampliado. Além disso, nos interiores de vários estados, mesmo de regiões desenvolvidas, existem muitas localidades que, embora não estejam a centenas de quilômetros de distância, estão localizadas em áreas de tão difícil acesso, por estradas de terra (intransitáveis em períodos de chuva), exigindo de seus moradores sacrifícios absurdos para terem acesso à serviços básicos, como consultas médicas – essas áreas poderiam ser também consideradas “remotas”. Privar esses cidadãos deste acesso à saúde, mediante o uso de tecnologias, é algo que então não se justificaria. Melhor seria que cada Conselho Regional de Medicina pudesse então delimitar áreas desassistidas, seja pelo acesso difícil, seja pela distância, contemplando essas regiões com o atendimento à distância, relativizando então o conceito de “remoto”.
A questão de quando começa a relação médico-paciente
Na exposição de motivos da Resolução, o conselheiro-relator Sr. Aldemir Humberto Soares assim discorre sobre o início da relação médico-paciente:
“A relação entre médico e paciente é complexa e baseia-se na compreensão mútua da responsabilidade compartilhada pelos cuidados com a saúde do paciente. A Federation of State Medical Boards (FSMB) dos Estados Unidos reconhece que embora possa ser difícil em algumas circunstâncias definir com precisão o início da relação médico-paciente, particularmente quando o médico e o paciente estão em locais distintos, ela tende a começar quando um indivíduo com uma questão relacionada à saúde procura um médico que possa prestar assistência. O relacionamento será claramente estabelecido quando o médico concordar em realizar o diagnóstico e tratamento do paciente e o paciente concordar em ser tratado.” (Grifos nossos)
É compreensível que o Sr. Relator tenha tido todo o cuidado do mundo ao usar essas palavras : “(…) tende a começar”. Mas qual é o problema de uma pessoa procurar um médico pela internet para lhe prestar algum tipo de assistência? Esse não seria um começo aceitável? Se “o relacionamento será claramente estabelecido quando o médico concordar em realizar o diagnóstico e tratamento do paciente e o paciente concordar em ser tratado”, e isso ocorrer por meios digitais, onde está o problema?
Noutros termos, a relação médico-paciente, nos dias atuais, também começa no ciberespaço. E pode seguir apenas nele ou mesclar momentos presenciais com outros digitais. Isso porque o futuro da medicina será muito provavelmente a oferta híbrida de serviços e atenção.