A nova resolução do CFM sobre a Telemedicina inaugura uma nova fase para todas as especialidades médicas. É preciso porém que, neste momento, cada especialidade reflita sobre os termos desta resolução pois modificações poderão ser propostas nas próximas semanas, seja através da consulta pública, seja através das associações e conselhos regionais.
No que diz respeito à psiquiatria, vejamos o que dizem os parágrafos que mais nos interessam e onde a resolução pode nos ser prejudicial:
“Art. 4º
A teleconsulta é a consulta médica remota, mediada por tecnologias, com médico e paciente localizados em diferentes espaços geográficos.
§1ºA teleconsulta subentende como premissa obrigatória o prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente.
§2ºNos atendimentos por longo tempo ou de doenças crônicas, é recomendado consulta presencial em intervalos não superiores a 120 dias.
§3ºO estabelecimento de relação médico-paciente de modo virtual é permitido para cobertura assistencial em áreas geograficamente remotas, desde que existam as condições físicas e técnicas recomendadas e profissional de saúde.“
A chamada “premissa obrigatória” de uma primeira consulta presencial do paciente com o médico para posteriores encontros virtuais condena, na prática, o médico a continuar atendendo apenas pacientes de sua área mais próxima. Um paciente de outro estado ou mesmo de uma outra região do próprio estado não vai se dispor a realizar uma consulta presencial para depois ser atendido à distância. E mais: decorridos 120 dias de atendimento à distância, a Resolução recomenda que seja realizada uma nova consulta presencial! Como isso será possível para, por exemplo, um paciente que tenha se mudado de cidade ou de estado e que gostaria, muito compreensivelmente, continuar sendo atendido pelo mesmo médico, só que agora à distância. A questão é ainda mais complicada para a Psiquiatria e os acompanhamentos da maior parte dos pacientes. Isso porque a Resolução ao invés de favorecer o acompanhamento à distância de pacientes com doenças crônicas (como grande parte dos transtornos psiquiátricos de fato são), estabelece essa recomendação de uma consulta presencial a cada 120 dias. Estudos realizados em vários países comprovam os benefícios dos atendimentos à distância de doentes crônicos e eu não me recordo que, em nenhum deles, exista a advertência de que consultas presenciais eram sempre recomendadas após algum tempo. Soa como um contrassenso mesmo em termos de Telemedicina. Se ela é eficaz e indicada para o acompanhamento de doentes crônicos, por que deixaria de sê-lo após 4 meses? Em termos práticos, nossa especialidade deveria pleitear uma espécie de tratamento especial, permitindo-se que uma primeira consulta fosse realizada à distância (desde que acompanhada por um médico) e dispensando-se os pacientes da realização de uma consulta presencial após 120 dias – ou talvez recomendando-se a realização de uma nova consulta à distância acompanhada por um médico não especialista.
O tema das “áreas remotas” parece ser outro mito da Telemedicina que não foi superado pela nova Resolução, infelizmente. Uma coisa é o sucesso absoluto e inquestionável de todos os programas de Telessaúde e de Telemedicina que são levados à cabo em regiões brasileiras distantes e isoladas, como a Amazônia. Liberar os pacientes destas áreas de exigências como a de realizar uma consulta presencial é decisão mais do que sensata. Outra coisa é fechar os olhos para duas outras situações que podem ser equiparadas às das áreas “geograficamente remotas” (e que o CFM sempre exemplifica como áreas próximas à florestas):
as distâncias enormes (e agravadas pelo trânsito) dentro de uma mesma cidade e as áreas isoladas e de difícil acesso, ainda que não tão distantes (em termos de quilômetros) da cidade mais próxima.
No primeiro caso, acho pouco provável que o CFM revise seu entendimento, mesmo porque não haverá ninguém defendendo essa tese – desconheço a existência de alguma associação de medicina urbana no Brasil. Uma lástima e, de certo modo, um atraso! Nossas cidades grandes já contam com um trânsito absolutamente terrível, tornando o deslocamento das pessoas alguma coisa medida em horas. As novas tecnologias tem representado uma grande ajuda às pessoas, poupando-as cada vez mais de deslocamentos desnecessários e desgastantes. Para nossos doentes crônicos com transtornos mentais isso pode representar uma total impossibilidade de acesso ou, no mínimo, acrescentar um sofrimento – e custo – que poderia ser evitado. Como podemos falar de algo “remoto” se já estamos falando de tecnologia que nos aproxima? Não faz sentido liberar o uso de uma tecnologia de aproximação para um ambiente e para outro não. Os senhores conselheiros do CFM deveriam perceber o isolamento em que vivem os cidadãos urbanos, confinados pela insegurança das cidades, pelo trânsito intransponível, pela solidão do envelhecimento e, percebendo essa brutal transformação da vida urbana, permitirem que uma solução tecnológica viesse minorar o sofrimento das pessoas e ampliar o acesso à saúde.
Ainda neste tópico das “áreas remotas”, exemplifico com uma situação que vivi, trabalhando na região sul do estado de Santa Catarina, num pequeno município que tinha varias comunidades distantes cerca de 30 km da sede, através de estradas de terra, intransitáveis em épocas de chuva. Ou pior ainda, na serra catarinense, onde alguns municípios se encontram no meio do nada, isolados. Durante apresentação no Fórum, um palestrante do CFM abriu a possibilidade de que os conselhos regionais venham a definir que áreas do estado poderiam ser consideradas “remotas” e, portanto, serem beneficiadas por Telemedicina. Menos mal. Alguma luz no fim do túnel, portanto.
Em relação à especialidade da psiquiatria e o potencial para o uso da Telemedicina, esses seriam os pontos a serem pensados, ao meu ver. Se em alguns pontos a Resolução avançou consideravelmente e abriu novas perspectivas, noutros o avanço não ficou tão evidente assim. Avalio que esses pontos levantados como obstáculos ao pleno exercício da Telepsiquiatria sejam, de certo modo, reminiscências da primeira Resolução do CFM sobre Telemedicina, quando os temores eram muitos de que as novas tecnologias representassem uma ameaça à relação medico-paciente. O tempo passou, os benefícios se consolidaram…e nossos pacientes estão esperando por soluções (tecnológicas) para seus problemas (de saúde).